domingo, 19 de janeiro de 2014

Crônica ~ Impessoal

    Antes de escrever, é imprescindível despir-se, e é o que faço. Dispo-me de meus preconceitos, de meus medos e até dos meus próprios conceitos. Com um gesto, livro-me do mundo exterior, como quem joga uma camisa suada dentro do cesto. Retiro as camadas de minha pele peça por peça, até ser somente músculo e sangue pulsante – o coração para avivar os textos que se seguirão e o sangue para fluir as ideias. Reduzo-me ao mínimo da matéria para transbordar em essência... Essência, essencial, alma viva que persiste fora da carne, nas páginas pálidas ou um tanto pardas – tenho uma queda especial pelas pardas, pois não contrastam com o impresso negro que lhes imprimi. Pois o meio não deve contrastar com o conteúdo, porque é nas páginas que vivem as ideias, e estas devem acolhê-las confortavelmente e acolher também o leitor, e não despejar os parágrafos numa súbita torrente sem controle de fluxo.
    Mas voltemos ao ato de despir-se. Ritual esse tão erótico, é verdade – tão simbolicamente erótico que excita-me a inteligência e me vejo consumido pelo desejo da mente criativa fervilhante. É necessário livrar-se do supérfluo, dos sons do exterior, do mundo exterior – do exterior do próprio âmago do ser, reduzindo-se a quase nada. Pois quem sou eu? Eu não sou, então. Eu não sou assim como Clarice – ou digo Rodrigo? Ah, que importam nomes, se ambos de fato não são? Eu reitero: Não sou, assim como também não foram. Embora “ser” ainda evoque uma imagem existencial demais para algo que simplesmente não é. Livra-se, então – e nota-se que já me despi da primeira pessoa – do básico; os pensamentos já atualizados, as ideias mais anciãs – afinal ideia não é massa mas todo mundo sabe que nada de bom se faz com pão dormido. De que serve conhecimento e estudo acumulado, se já não há mais mundo, se já não há mais ser? De que serve qualquer elemento, concreto ou abstrato, quando se tem pela frente a imensidão branca – não: quando se tem pela frente a imensidão parda que nada contém? Nunca vi de fato – juro por; pelo quê? Pelo que juro se não há nada? Apenas juro, então, se isso vale de alguma coisa – juro que nunca vi uma flor tão bela que parecesse mudar o tom de sua coloração de acordo com a luz incidente, que exalasse um aroma inebriante doce como mel e ácido como o fruto do limoeiro, que crescesse sozinha no meio da relva baixa e parecesse tão frágil quanto absoluta em vida e esplendor. Juro que nunca vi tal coisa, nem absolutamente nada semelhante, mas conheço a essência e sobre a essência sei escrever. E se o senhor ou a senhora, que imagino também não terem conhecimento de tal elemento da natureza; se os senhores tomam conhecimento do que escrevi e podem ver a flor, tocá-la e sentir seu cheiro, só são capazes pois conhecem a essência. O que – desculpem-me, não quero desvalorizar ninguém – não é mérito nenhum, pois tudo e todos têm conhecimento da essência, pois a essência é a única coisa que realmente é – e portanto a única coisa que está. Está onde? Em tudo que não é.
    Nesse ponto, se se despiu corretamente, não deve haver mais dentro ou fora, exterior e interior não dever ser mais signos, pois não há “ser-parâmetro” para delimitarem-se fronteiras. Não deve haver mais nenhum signo, na verdade. Deve-se construí-los. Com o quê? Só é possível construir algo pelo intermédio de algo outro. E como não há algo algum, deve-se então criá-los. E criar não necessita do “haver” prévio de nada.
    É então que se escreve. Apenas não sendo pode-se criar um mundo inteiro de seres. Pois se perguntarem-me a autoria de um texto meu, direi que o texto se escreveu. Afinal, o que é o autor? O autor é um ser cruel e imoral, é um deus grego que criou o mundo e exige sacrifícios. É, portanto, melhor se o autor não existir. Existe apenas o texto por ele só, e este não só se basta como se completa. E há então o leitor, o destinatário final do texto. E o leitor, por sua vez, para fazer valer todo esse ritual simbólico, deve também despir-se antes de mergulhar no novo. Mas ai é com os outros e já não mais comigo, e nada posso fazer sobre isso, e portanto nada mais interessa ser dito.

Victor Comenho, 15/06/13

11 comentários:

  1. nossa, adorei seu texto, Victor *---*
    escreves bem, muito bem :D
    http://torporniilista.blogspot.com.br/

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    1. Muito obrigado! *---* Esse foi um texto que surgiu num período que eu estava escrevendo bem pouco, por conta da faculdade e tudo, e acabei ficando feliz com o resultado! Que bom que não fui o único! :D
      Obrigado pelo apoio e por acompanhar o blog!

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  2. Ola
    Gostei do texto, você escreve muito bem.

    http://momentocrivelli.blogspot.com.br/

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  3. Parabéns pelo texto, você escreve muito bem!
    http://ancorandoomundo.blogspot.com.br

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  4. Oi Victor!
    Que texto excelente. Você escreve muito bem, mesmo!
    Com certeza, nos despir de nossa bagagem e de nossos chamados pré conceitos, realmente é muito difícil e é necessário para escrever com primor. Parabéns, continue escrevendo assim e sendo verdadeiro como neste texto.

    Mari Siqueira
    http://loveloversblog.blogspot.com

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    1. Creio que o melhor elogio que um escritor pode receber é aquele dirigido a um de seus textos. Esse texto surgiu de divagações, e se escreveu praticamente sozinho. Sempre fico incerto quanto aos textos que surgem assim, porém acredito que é esse o caminho para uma escrita cada vez mais aprimorada.
      Muito obrigado, Mariana! *--*

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  5. Adorei o texto,
    você apresentou pontos importante e os apresentou de forma coerente...
    Por diversas vezes partilhei de fatos citados no texto, gostei de saber que não fu a única. Parabéns pelo texto.

    http://soubibliofila.blogspot.com.br/

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  6. Nossa, senti como se estivessem falando de mim no meu processo criativo. É assim mesmo que ocorre comigo. Não sou eu que escrevo, as palavras saem de algum lugar e criam um mundo nas quais elas fazem sentido. Eu apenas sou instrumento delas.

    Beijos, Luu
    http://degradeinvisivel.blogspot.com.br

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  7. Gostei muito do texto, você escreve bem. Achei muito interessante o assunto que você abordou, nunca tinha pensado mais a fundo nisso, afinal despir-se de muitas coisas é essencial para uma boa escrita e tantas outras coisas...

    Abraços
    www.entrepaginasdelivros.com

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