Vamos falar de distopia? Mas baixem seus arcos, porque não é de Jogos Vorazes que vamos tratar agora (apesar da trilogia ser incrível!). Venho trazer a vocês um pouco de Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, um livro que vai além da política, criticando a sociedade e os indivíduos que a formam. Muito existe para ser dito da obra, e espero conseguir passar para vocês ao menos alguns dos aspectos mais importantes.
"As coisas que você está procurando, Montag, estão no mundo, mas a única probabilidade que o sujeito comum terá de ver noventa e nove por cento delas está num livro." - Fahrenheit 451, p. 125
Devo começar ressaltando uma coisa que ficou clara para mim desde o início: essa distopia se destaca das outras por não ter, num nível facilmente perceptível, um grande governo opressor e totalitário. Embora, com a leitura, você possa perceber o que há por trás da aparente normalidade, o livro é bem menos explícito nesse ponto do que no
1984, outro grande título quando se fala em distopias (e você pode ver
aqui o post sobre o livro). A obra de Orwell critica, sem rodeios, os governos totalitários e suas táticas de alienação. O romance de Bradbury, por outro lado, parte da alienação da população, que ocorre "espontaneamente", e é o que leva os governantes (quase nunca diretamente citados no livro) a poderem instaurar um regime abusivo.
Embora creio que muitos já tenham lido, ou pelo menos conheçam a história, resumirei nas linhas abaixo o contexto sobre o qual a trama é construída.
Em algum ano no futuro, as pessoas vivem totalmente deslumbradas com a tecnologia. A televisão passa a ocupar o espaço de uma parede, e algumas pessoas chegam a ter 4 aparelhos em um mesmo aposento, transformando assim a sala de estar em um universo completamente diferente, em que você praticamente pode esquecer onde está e pensar que as pessoas na televisão são reais. Millie, esposa de Montag, o protagonista, chega a crer que as pessoas que vê em sua televisão são sua família, a ponto de interagir com eles. Os carros atingem velocidades absurdas dentro das cidades, e os motoristas atropelam pedestres sem se alarmar. Rádios se transformaram em pequenos dispositivos que podem ser acoplados aos ouvidos e escutados ininterruptamente.
Nesse cenário, aproveitar um pouco de tempo ocioso é, literalmente, algo que pode ser punido pela lei. Ter posse de um livro, ou lê-lo, é o crime mais absurdo que uma pessoa poderia cometer. E assim, nessa sociedade tomada pela tecnologia, sem tempo livre e com valores morais completamente deturpados, não sobra tempo para pensar.
Em determinado momento do livro (atenção, alguns podem considerar isso spoiler!), você descobre que a inciativa de renegar o livro partiu dos próprios cidadãos. As próprias pessoas passaram a não ler o que as incomodava, o que discordava de seus pensamentos, até que, pouco a pouco, a aversão a qualquer coisa que pudesse causar um ligeiro desconforto foi crescendo, até contagiar toda a população. Em nome do "bem do povo", o governo designou uma tarefa controversa aos bombeiros: aqueles que antes apagavam incêndios agora são incumbidos de queimar qualquer livro que seja encontrado em posse dos cidadãos, evitando assim um mal-estar generalizado da sociedade, de modo que todos pudessem usufruir da vida sem nenhuma preocupação.
Montag, o personagem que nos guia por esse universo distópico, trabalha no corpo de bombeiros. Entretanto, após conhecer Clarice, uma garota que faz perguntas demais e que contrasta tanto com as outras pessoas que conhece, começa a questionar aspectos de sua própria vida. E assim, Montag acaba sendo arrastado para o universo literário, e comete os piores crimes que poderia alguma vez ter cometido.
A crítica mais forte de Fahrenheit 451 é dirigida, claramente, à supervalorização da tecnologia e a alienação pelos meios de mídia de massa; resultando na repulsão pelos livros. Como bom estudante de comunicação, não pude deixar de me empolgar muito com a leitura. Gastei muitos post-it's, mas valeu a pena, pois há muito nesse livro que vale guardar na memória!
Na estória, a força opressora do governo se faz presente durante as passagens que envolvem os bombeiros, mas é possível sentir em toda a obra a ameaça velada, o controle abusivo, as táticas de manipulação.
Acho que vale chamar a atenção para dois pontos opostos na narrativa: a personagem de Clarice e o velho Faber. Enquanto Faber vê os livros como instrumento de conhecimento e erudição, acima de tudo, Clarice vê neles uma espécie de libertação, que a desperta para as coisas simples da vida. Da mesma maneira, o primeiro procura os livros para encontrar respostas; enquanto a garota descobre que eles levam a questionar muitos conceitos e elaborar novas perguntas. Essa "contradição" serve para ilustrar os vários aspectos da leitura, e nos leva a refletir um pouco sobre o assunto. Quem disse que a leitura deve ser sempre pesada, de difícil compreensão, e trazer sempre respostas prontas? E quem disse que a leitura como passatempo basta por si só, se não houver também algo com mais "conteúdo"?
Esses são apenas alguns dos aspectos que a estória nos traz, e há muito mais reflexões e questões a serem levantadas sobre a obra. Por hora, encerro essa resenha aqui; e contenho minha vontade de falar sobre Schopenhauer, mas essa é outra história.