Se alguém chegar em praça pública e anunciar, a plenos pulmões, uma única palavra, é certo que o caos se instale. "
Fanfiction!",
grita o infeliz sujeito, e um dia talvez nem tão agradável, mas que
tinha tudo para ser normal, perde o rumo. Os mais críticos saem
correndo, chamando o pobre cidadão de herege, pregando contra blasfêmias
literárias. Os leitores mais convencionais cochicham entre si, tentando
descobrir se o termo enunciado se refere a algo verdadeiro ou mais uma
"lenda urbana virtual". E aqueles que escrevem, aqueles que dominam - ou
pensam dominar - esse gênero textual, correm em direção ao infeliz
aurauto, e proclamando "
Crossover!", "
DELENA!", "
DASTIEL LEMON!". Os pobres mortais fogem, de vez, assustados e confusos.
Acho que todos concordam que quando se trata de ficção criada por fãs, o
assunto gera polêmica. Houve a febre, o surto de crescimento de
produções deste tipo; houve uma lei que tentou proibí-las; e então elas
começaram a ser publicadas como romances. E desde então, o burburinho
virou algazarra e sempre que se toca no assunto, o clima fica tenso. É
quase impossível, em um grupo com mais de cinco pessoas, se entrar em
consenso sobre isso; afinal, boa parte provavelmente nem saberá do que
está se falando.
Como leitor compulsivo e escritor passional (e quem sabe um dia,
profissional), confesso que comecei a escrever dentro do universo das
fanfictions, ou
fanfics,
para os mais próximos. Não vou cuspir no prato em que comi; foi nessa
época que minha escrita amadureceu mais rapidamente, e também, até
agora, meu período de produção mais fértil. Mas vamos conceituar: o que
elas são, afinal?
Fanfictions são textos de
caráter ficcional criados por fãs, que tratam de filmes, livros,
programas de televisão e qualquer outra coisa que possa gerar um grupo
mínimo de fieis espectadores ou leitores (ou seja, um
fandom). Elas são postadas em sites específicamente criadas para isso, embora sejam encontradas em vários recantos da
web. Cada capítulo é postado logo que é escrito e os leitores tem que aguardar os próximos. Aqueles que se propõe a escrever dentro deste gênero literário (e fique
claro que, aqui, esse será o termo usado, e não adianta bater o pé)
gostam de tomar as vezes do autor original, criando tramas em espaços
que foram deixados em branco na história. Por exemplo, os assim
denominados
potterheads somam grandes números de histórias que se
passam antes, depois ou em tramas paralelas àquela narrada por J. K.
Rowling. As vezes, reescrevem a história, mas atendo-se às regras do
universo ficcional no qual estão trabalhando. E por vezes, rompem com
todas as amarras, tomando emprestado poucos elementos de uma narrativa
original e criando algo quase completamente novo dentro disso. É claro
que existem muitos tipos de
fanfics e muitas maneiras de se narrar essas histórias, mas essa explanação vale como um bom resumo.
Assim como existem romancistas, cronistas e poetas de todos os tipos, o mesmo acontece com os autores de
fanfics
e suas produções. Existem histórias bélissimas, dignas de serem lidas,
que entretem e são dotadas de tanta qualidade quanto qualquer outro
texto bem escrito. E existem histórias que fazem com que você queria
tomar de volta cada segundo de sua vida que gastou na leitura. Embora
desde sempre houvesse muita briga entre liberais (os autores ou
admiradores das ficções de fãs) e os conservadores (seguidores fiéis de
Veríssimo, Lovecraft e outros nomes clássicos); mas atritos existem em
toda a parte sobre qualquer tema, então não há muito o que fazer.
Mas, como (ex) autor e leitor deste gênero, tenho que confessar: o problema começou na transposição. Foi quando criaram as
fanfics "originais" que a semente da discórdia brotou.
Fanfiction, entendida
como gênero (e esse é o caso), pressupõe regras básicas de estrutura,
mas não de temática. São histórias divididas em capítulos, geralmente
curtos (pois a leitura era toda feita pela tela dos computadores, antes
de surgirem os
tablets, e isso é cansativo), que trazem alguns
elementos bem divergentes dos livros. Muitas fanfics são estruturadas em
POV's, ou tem trilha sonora (cujas faixas, muitas vezes, são
disponibilizadas em players dispostos no decorrer do texto), e
normalmente trazem comentários do autor, no início ou no final dos
capítulos. São narrativas criadas de fãs para fãs, e muitas vezes
permeadas de metalinguagem. Muitas tem um ar mais descontraído, não
necessarimanete quanto ao conteúdo, mas à maneira como foram escritas.
Assim, elas possuem estruturas próprias e que servem bem (ou, as vezes, não), aos seus propósitos.
Mas
com o surgimento de editoras independentes (o que é algo muito bom, não
entendam errado), e a empolgação deste autores também independentes,
começou-se a querer transformar
fanfics em livros. As histórias originais, que podem ser chamadas de
fanfics pois se enquadram em sua estrutura, apesar de não pertencerem a nenhum
fandom.
Mas quando as editoras começaram a abrir as portas para novos autores
(aparentemente com baixos critérios de seleção), aqueles escritores
confinados no universo virtual resolveram publicar seus próprios livros. O que foi um acontecimento com grande potencial, até que se começou a pescar
fanfics da internet e jogá-las em livros de papel, chamando o resultado final de romance, embora continuasse sendo a mesma coisa, só em um suporte diferente. Quem vive ou viveu neste universo de fãs sabe logo quando pega um livro que foi "adaptado" da uma
fanfic, pois conhece as características do gênero. E por mais que o texto seja bom, que a história seja cativante e que seja uma ótima
fanfiction, como romance, o êxito será difícil. Já imaginaram postar "Dom Quixote" na internet, um capítulo por semana? Provavelmente não daria certo. Inclusive, muitos autores que aspiram, desde o começo, escrever romances propriamente ditos, mas não tem o apoio de editoras, encontram nos sites destinados a esse outro gênero um espaço de publicar seus textos e fazer com que sejam lidos. E, normalmente, realmente isso não dá certo.
Tudo isso sem nem falar nos romances originais que começaram a ser produzidos como se fossem
fanfics, mas se escrever mais, o texto não acaba nunca.
E foi assim que o nosso cenário literário atual ficou um pouquinho mais caótico, os preconceitos se acirraram e o entendimento entre leitores se tornou cada vez mais difícil.